A esmola: sinal universal de justiça e solidariedade
1. Desejo voltar mais uma vez aos assuntos das nossas três meditações quaresmais: oração, jejum e esmola; sobretudo a esta última. Se a oração, o jejum e a esmola formam a nossa conversão a Deus, conversão que é expressa de modo mais exacto com o termo grego «metánoia», se elas constituem o principal tema da liturgia quaresmal, um estudo penetrante desta liturgia persuade-nos que a «esmola» ocupa nesta um lugar especial. Procurámos explicá-lo brevemente na quarta-feira passada, apoiando-nos no ensinamento de Cristo e dos Profetas do Antigo Testamento, que ressoa muitas vezes na liturgia quaresmal.
Existe porém a necessidade de actualizar esta matéria, de a traduzir, por assim dizer, não só em linguagem de termos modernos, mas também em linguagem da realidade humana actual: interior e social, ao mesmo tempo. Como se referem à realidade actual as palavras pronunciadas há milhares de anos, num contexto histórico-social completamente diverso, palavras dirigidas a homens duma mentalidade tão diversa da de hoje? Como é possível então aplicá-las a nós mesmos? Que pontos nevrálgicos da nossa actual injustiça, das iniquidades humanas e das várias desigualdades, não eliminadas na vida da humanidade — embora tantas vezes a palavra de ordem «igualdade» tenha sido escrita em várias bandeiras —, que pontos devem as nossas palavras combater?
Ressoam com energia insólita as discretas palavras de Cristo dirigidas um dia ao apóstolo traidor: Pobres sempre tereis convosco; mas a mim nem sempre me tereis (Jo. 12, 8).
«Vós tereis sempre pobres convosco». Depois do abismo desta palavra, nenhum homem pôde nunca dizer o que é a Pobreza. (...) Quando se pergunta a Deus, Ele responde que é Ele precisamente o Pobre: «Ego sum pauper» (Léon Bloy, La femme pauvre, II.1, Mercure de France 1948).
2. A chamada à penitência, à conversão, significa chamada à abertura interior «para com os outros». Nada pode substituir, na história da Igreja e na história do homem, esta chamada. Esta chamada tem infinitos destinatários. Dirige-se a todos os homens e dirige-se a cada um pelos motivos próprios a ele mesmo. Cada um deve portanto ver-se nos dois aspectos do destino desta chamada. Cristo exige de mim uma abertura para com o outro. Mas para com que outro? Para com aquele que está aqui, neste momento. Não se pode «adiar» esta chamada de Cristo para um momento indefinido em que aparecerá aquele mendigo «qualificado» a estender a mão.
Devo estar aberto para cada homem, disposto a «oferecer-me». A oferecer-me levando quê? E sabido que às vezes com uma só palavra podemos «dar um presente» ao outro; mas com uma palavra só, podemos também golpeá-lo dolorosamente, injuriá-lo e feri-lo; podemos até «matá-lo» moralmente. É necessário portanto aceitar esta chamada de Cristo naquelas ordinárias situações quotidianas de convivência e de contacto, onde cada um de nós é sempre aquele que pode «dar» aos outros e, ao mesmo tempo, aquele que sabe aceitar o que os outros podem oferecer-lhe.
Responder à chamada de Cristo para me abrir interiormente para os outros, significa viver sempre pronto a encontrar-me do outro lado do destino desta chamada. Eu sou quem dá aos outros, mesmo quando sei receber, quando sou agradecido por todo o bem que me chega doutrem. Não posso ser fechado e ingrato. Não posso isolar-me. Aceitar o chamamento de Cristo para abrir-me aos outros exige, como se vê, uma reelaboração de todo o estilo da nossa vida quotidiana. É necessário corresponder a esta chamada nas dimensões reais da vida. Não adiar para outras condições e circunstâncias, para quando se apresentar a necessidade. Urge perseverar continuamente nessa atitude interior. Sem isso, quando se apresentar a ocasião «extraordinária», poderá acontecer-nos que não tenhamos a correspondente disposição.
3. Entendendo assim, de maneira prática, o significado da chamada de Cristo a «oferecermo-nos» aos outros na vida de cada dia, não queremos restringir o sentido desta doação apenas aos factos quotidianos, por assim dizer de pequenas dimensões. O nosso «oferecermo-nos» deve referir-se também aos factos longínquos, às necessidades do próximo com quem não estamos em contacto cada dia, mas de cuja existência somos conhecedores. Sim, hoje sabemos muito melhor quais as necessidades, os sofrimentos e as injustiças dos homens que vivem noutros países, noutros continentes. Estamos longe deles geograficamente, estamos separados por barreiras linguísticas, por fronteiras levantadas por cada um dos Estados ... Não podemos entranhar-nos directamente na fome deles, nas indigências, nos maus-tratos, nas humilhações, nas torturas, na prisão, nas discriminações sociais que os amarguram, nas condenações a um «exílio interior» ou à «proscrição» a que se vêem sujeitos; sabemos todavia que sofrem, e sabemos que são homens como nós, nossos irmãos. A «fraternidade» não foi escrita só nas bandeiras e nos estandartes das modernas revoluções. Já há muito a proclamou Cristo: ... vós sois todos irmãos (Mt. 23, 8). E mais ainda: a esta fraternidade deu Ele um ponto indispensável de referência: ensinou-nos a dizer «Pai nosso». A fraternidade humana pressupõe a paternidade divina.
A chamada de Cristo a abrirmo-nos «ao outro», ao «irmão», precisamente ao irmão, tem um raio de extensão sempre concreto e sempre universal. Diz respeito a cada um, porque se refere a todos. A medida deste «abrirmo-nos» não é só — e não é tanto — a proximidade do outro, quanto o são exactamente as suas carências: tinha fome, tinha sede, estava nu, na prisão, doente ... Respondamos a esta chamada procurando o homem que sofre, seguindo-o até além-fronteiras dos Estados e dos Continentes. Deste modo cria-se — através do coração de cada um de nós — aquela dimensão universal da solidariedade humana. A missão da Igreja está em guardar esta dimensão: Não limitar-se a algumas políticas e a alguns sistemas. Guardar a universal solidariedade humana sobretudo com aqueles que sofrem; conservá-la com respeito a Cristo que formou, duma vez para sempre, essa dimensão de solidariedade com o homem. O amor de Cristo nos constrange, persuadidos que, se um só morreu por todos, então todos estão mortos. Cristo morreu por todos para que os que vivem já não vivam para si mesmos, mas para Aquele que por eles morreu e ressuscitou (2 Cor. 5, 14 s). E deu-no-la como missão, uma vez para sempre. Deu-a a cada um. Quem é fraco, sem que eu também o seja? Quem tropeça, que eu não me consuma com febre? São palavras de São Paulo (2 Cor. 11, 29).
Portanto, na nossa consciência — na consciência individual do cristão —, na consciência social dos vários ambientes e das nações, devem formar-se, diria eu, zonas especiais de solidariedade precisamente com aqueles que mais sofrem. Devemos trabalhar sistematicamente para que as zonas de especiais carências humanas, dos grandes sofrimentos, dos agravos e das injustiças, se tornem zonas de solidariedade cristã de toda a Igreja e, por meio da Igreja, de cada sociedade e da humanidade inteira.
4. Se vivemos em condições de prosperidade ou de bem-estar, mais urna razão para termos consciência de toda a geografia da fome no globo terrestre; mais uma razão para dirigirmos a nossa atenção para a miséria humana, como fenómeno de massa; devemos despertar a nossa responsabilidade e estimular a prontidão para um auxílio activo e eficaz. Se vivemos nas condições de liberdade, de respeito dos direitos humanos, mais uma razão para sofrermos pelas opressões das sociedades que estão privadas da liberdade, pelas opressões dos homens que estão privados dos direitos fundamentais humanos. Isto diz respeito também à liberdade religiosa. De modo especial onde há respeito pela liberdade religiosa, devemos participar nos sofrimentos dos homens, às vezes de comunidades religiosas inteiras e de Igrejas inteiras, a quem é negado o direito à vida na religião segundo a própria confissão ou o próprio rito. Devo chamar pelos seus nomes a tais situações? Sem dúvida. É meu dever. Mas não podemos ficar só nisto. É necessário que nós, todos e em toda a parte, nos esforcemos por tomar uma atitude de solidariedade cristã com os nossos irmãos na fé, que sofrem discriminações e perseguições. É necessário, além disso, procurar formas em que esta solidariedade possa exprimir-se. Esta foi sempre, desde os tempos mais antigos, a tradição da Igreja. Na verdade, é bem sabido que a Igreja de Jesus Cristo não entrou «em posição de força» na história da humanidade, mas através de séculos de perseguições sofridas. E foram precisamente estes séculos que estabeleceram a mais profunda tradição da solidariedade cristã.
Também hoje tal solidariedade é a força duma renovação autêntica. É o caminho indispensável para a auto-realização da Igreja no mundo contemporâneo. Foi a verificação da nossa fidelidade a Cristo que levou a dizer: Pobres sempre tereis convosco (Jo. 12, 8. 7), e ainda: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes (Mt. 25, 40). A nossa conversão a Deus só se realiza no caminho desta solidariedade.
Papa João Paulo II
4 de Abril de 1979
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