6. Os elementos do discernimento. O livro da própria vida



Nas catequeses destas semanas insistimos sobre os pressupostos para fazer um bom discernimento. Na vida devemos tomar decisões, sempre, e para tomar decisões devemos percorrer um caminho, uma estrada de discernimento. Cada atividade importante tem as suas “instruções” a seguir, que devem ser conhecidas para que possam produzir os efeitos necessários. Hoje meditemos sobre outro ingrediente indispensável para o discernimento: a própria história de vida. Conhecer a própria história de vida é um ingrediente – digamos assim – indispensável para o discernimento.

A nossa vida é o “livro” mais precioso que nos foi confiado, um livro que muitos infelizmente não leem, ou que o fazem demasiado tarde, antes de morrer. No entanto, é precisamente nesse livro que se encontra aquilo que se procura inutilmente por outros caminhos. Santo Agostinho, um grande investigador da verdade, compreendeu-o exatamente relendo a sua vida, observando nela os passos silenciosos e discretos, mas incisivos, da presença do Senhor. No final deste percurso, anotará com admiração: «Tu estavas dentro de mim, e eu fora. Lá, eu procurava-te. Deformado, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Tu estavas comigo, mas eu não estava contigo» (Confissões X, 27.38). Daqui deriva o seu convite a cultivar a vida interior, para encontrar o que se procura: «Volta para ti mesmo. No homem interior habita a verdade» (A verdadeira religião, XXXIX, 72). Este é um convite que faria a todos vós, inclusive a mim mesmo: “Entra em ti mesmo. Lê a tua vida.  Lê dentro de ti, como foi o teu percurso. Com serenidade. Entra em ti mesmo”.

Muitas vezes, também nós vivemos a experiência de Agostinho, de nos encontrarmos presos em pensamentos que nos afastam de nós mesmos, mensagens estereotipadas que nos ferem: por exemplo, “Nada valho” – e desanimas; “tudo corre mal comigo”, e deprimes-te; “nunca farei nada de bom”, e desencorajas-te; e assim é a vida. Estas frases pessimistas que te desanimam! Ler a própria história significa também reconhecer a presença destes elementos “tóxicos”, mas para depois ampliar a trama da nossa narração, aprendendo a observar outras coisas, tornando-a mais rica, mais respeitadora da complexidade, conseguindo até captar os modos discretos como Deus age na nossa vida. Certa vez conheci uma pessoa da qual havia quem dissesse que merecia o prémio Nobel da negatividade: tudo era terrível, tudo, e procurava sempre motivos para desanimar. Era uma pessoa amargurada e no entanto possuía muitas qualidades. Depois, esta pessoa encontrou outra pessoa que a ajudou muito e cada vez que se lamentava de algo, esta última dizia: “Agora, para compensar, diz alguma coisa positiva de ti”. E ele: “Ah, sim... tenho também esta qualidade”, e pouco a pouco ajudou-o a ir em frente, a ler bem a própria vida, quer nos aspetos negativos quer nos positivos. Devemos ler a nossa vida, e assim vemos o que não é positivo e também as coisas boas que Deus semeia em nós.   

Vimos que o discernimento tem uma abordagem narrativa: não se limita à ação pontual; insere-a num contexto: de onde vem este pensamento? O que sinto agora, de onde vem? Para onde me leva o que estou a pensar agora? Quando tive a ocasião de o encontrar precedentemente? É algo novo que sinto agora, ou que já senti outras vezes? Porquê é mais insistente do que outros?  O que me quer dizer a vida com isto?

A narração das vicissitudes da nossa vida permite também compreender matizes e detalhes importantes, que podem revelar-se ajudas valiosas até então ocultas. Por exemplo, uma leitura, um serviço, um encontro, à primeira vista considerados de pouca importância, sucessivamente transmitem uma paz interior, transmitem a alegria de viver e sugerem outras iniciativas de bem. Deter-se e reconhecer que isto é indispensável para o discernimento. Parar é reconhecer: é importante para o discernimento, é uma obra de recolha daquelas pérolas preciosas e escondidas que o Senhor disseminou no nosso terreno.

O bem está escondido, sempre, pois o bem tem pudor e esconde-se: o bem está escondido; é silencioso, requer uma escavação lenta e contínua. Pois o estilo de Deus é discreto: a Deus apraz o escondimento, a discrição, não se impõe; é como o ar que respiramos, não o vemos, mas faz-nos viver, e só nos damos conta dele quando nos falta.

Habituar-se a reler a própria vida educa o olhar, aguça-o, permite notar os pequenos milagres que o bom Deus realiza para nós todos os dias. Quando prestamos atenção, observamos outros rumos possíveis que revigoram o gosto interior, a paz e a criatividade. Acima de tudo, torna-nos mais livres dos estereótipos tóxicos. Diz-se sabiamente que o homem que não conhece o seu passado está condenado a repeti-lo. É curioso: se não conhecermos a estrada percorrida, o passado, repetimo-lo sempre, somos circulares. A pessoa que caminha circularmente nunca vai em frente, não há caminho, é como o cão que se morde a cauda, sempre vai assim, e repete as ações.

Podemos perguntar-nos: já contei a alguém a minha vida? Esta é uma bonita experiência dos namorados, que quando a relação é séria contam a vida um ao outro... Trata-se de uma das formas de comunicação mais belas e íntimas, narrar a própria vida. Ela permite-nos descobrir coisas até então desconhecidas, pequenas e simples, mas, como diz o Evangelho, é precisamente das pequenas coisas que nascem as grandes (cf. Lc 16, 10).

Também a vida dos santos constitui uma ajuda preciosa para reconhecer o estilo de Deus na própria vida: permite familiarizar com o seu modo de agir. O comportamento de alguns santos interpela-nos, mostrando-nos novos significados e oportunidades. Foi o que aconteceu, por exemplo, a Santo Inácio de Loyola. Quando descreve a descoberta fundamental da sua vida, acrescenta uma importante observação: «Por experiência, deduziu que alguns pensamentos o deixaram triste e outros, alegre; e pouco a pouco aprendeu a conhecer a diversidade dos pensamentos, a diversidade dos espíritos que nele se agitavam» (Autob., n. 8). Conhecer o que acontece dentro de nós, conhecer, estar atentos.

O discernimento é a leitura narrativa dos momentos bons e dos momentos escuros, das consolações e desolações que experimentamos ao longo da nossa vida. No discernimento é o coração que nos fala de Deus, e nós devemos aprender a compreender a sua linguagem. Perguntemo-nos, no final do dia, por exemplo: o que aconteceu hoje no meu coração? Alguns pensam que fazer este exame de consciência é fazer a contabilidade dos pecados que cometemos – e cometemos muitos – mas é também perguntar-se “o que aconteceu dentro de mim, tive alegrias? O que me causou alegria? Fiquei triste? Qual o motivo da tristeza? E assim aprender a discernir o que acontece dentro de nós.


Catequese do Papa Francisco
19 de outubro de 2022



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