A solenidade do Corpus Christi em Portugal
Texto: iMissio
A instituição da festa do Corpo do Senhor situa-se no movimento desejoso de ver a hóstia e a adorar, que valorizou o momento da celebração em que se faz a narração da Ceia, assinalado pelo toque de campainha e com solenização ritual.
A festa do Corpus Christi, mal traduzida por «Corpo de Deus», mas chamada «Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo», foi instituída na Bélgica em 1246 e aprovada para toda a Igreja latina em 1264, na quinta-feira após a oitava do Pentecostes. Constitui uma resposta de fé e de culto a doutrinas heréticas sobre a presença real de Cristo na Eucaristia, ao mesmo tempo que coroou um movimento de devoção ardente ao Santíssimo Sacramento do altar. Em 1318 já o papa João XXII lhe acrescentava a procissão solene, que a caracteriza por levar em triunfo o «Santíssimo Sacramento».
Portugal não esperou a determinação papal e acolheu a festa pouco depois da sua criação belga. Já há referências para o Porto (em 1294) e para Coimbra ainda no século XIII. O título de «Corpus Christi» aparece em livros da Colegiada de Guimarães (1302), foi dado ao convento dominicano de Gaia (entre 1348 e 1352) e para reparar um ultraje (1361 e 1362) à eucaristia acontecido em Coimbra foi erguida a Capela do Corpo de Deus, cerca de 1367. Em Évora dá o nome a uma travessa (1385). A Confraria do Corpo de Deus da Igreja de São João Bartolomeu (Guadalupe), em Braga, em 1403 já tinha uma centena de irmãos. Todas as cidades e vilas do reino realizavam com brilho a mais espantosa das procissões.
A procissão dava lugar a representações, como se conhece no tempo de D. Manuel. As manifestações teatrais e os jogos de danças que se juntaram aos cortejos solenes davam lugar a abusos, que foram controlados por determinações diocesanas.
A partir do final do século XV assistiu-se a uma vaga de fundo de ordenação e moralização das procissões católicas que atingiu acima de todas a do Corpus Christi, que na apresentação das diferentes corporações de mesteres ou determinados ofícios acabava por denotar a vida do concelho mas provocava crescimentos espetaculares de representatividade que procuravam fazer chamadas de atenção sobre o poder, económico em primeiro lugar, de alguns dos participantes.
As proibições desta procissão concelhio-religiosa foram muitas e atingiram sobretudo os seus elementos festivaleiros, como o São Jorge, o seu alferes, cavalo e sela, o Dragão, Serpe ou Conca, as danças e folias variadas.
Além da particular exaltação eucarística na Quinta-feira Santa, os acontecimentos mais atribulados da vida social e política e ocasiões de profanações sacrílegas proporcionavam solenes e emotivos atos de desagravo. João Marques sublinha o momento da Restauração como particularmente propício ao recurso do imaginário eucarístico nos sermões e nas narrações de atos litúrgicos. Unia-se a defesa da pátria à comunhão eucarística.
Esta sensibilidade foi contrariada pela separação da Igreja do Estado e pelas orientações do concílio plenário (1926), que conseguiram reduzir a procissão ao meramente religioso e nalguns lugares levaram mesmo à sua suspensão.
[D. Carlos A. Moreira Azevedo, António Camões Gouveia (Dicionário de História Religiosa de Portugal); Diretório sobre a piedade popular e a Liturgia]
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