Paixão segundo São Mateus




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Johann Sebastian Bach
Paixão segundo São Mateus, BWV 244

Composição: 1727, rev. 1736
Estreia: Leipzig, 11 de abril de 1727

Durante séculos vigorou no seio da Igreja Luterana a norma do tempus clausum, a proibição de música instrumental durante o Advento e a Quaresma. Esta prescrição era seguida pela cidade de Leipzig, abrindo-se, contudo, uma exceção: a narrativa da Paixão de Cristo, durante o Serviço de Vésperas de Sexta-Feira Santa. Foi para este momento específico do ano litúrgico que Johann Sebastian Bach, na qualidade de Kantor da igreja de São Tomé de Leipzig, escreveu a Passio Domini nostri J.C. secundum Evangelistam Matthaeum [Paixão de Nosso Senhor J(esus) C(risto) segundo o Evangelista Mateus]. Bach devotou particular cuidado na sua composição e maior cuidado, ainda, na elaboração de um manuscrito definitivo, correspondente às sucessivas alterações que foi introduzindo, desde a sua primeira audição, a 11 de abril de 1727, até à versão final, hoje em concerto, estreada a 30 de março de 1736.

Na senda do que fizera na Paixão segundo São João (1724), Bach seguiu o cânone para este tipo de narrativas; o texto do evangelista é intercalado por comentários e reflexões poéticas, que assumem a forma de recitativos, árias e corais, traço particular da tradição musical luterana, com raízes na oratória italiana e na sua congénere germânica, as historiae. Mas esta narrativa enquadrada vai muito para além da prática corrente, os sermões em música, como são genericamente conhecidos. Valendo-se de um extraordinário libreto escrito por Picander, pseudónimo de Christian Friedrich Henrici (1700-1764), que por sua vez se baseou nos sermões do teólogo Heinrich Müller (1631-1675), Bach construiu uma obra musical impressionante, quer pela sua duração, quer pela estrutura complexa e heterogénea, rica em detalhes musicais e expressivos.

Desde logo, a Paixão segundo São Mateus tem uma tripla dimensão litúrgico-dramática. A narrativa das últimas horas de Cristo, seguindo os capítulos 26 e 27 do Evangelho de São Mateus, corre, paralela, à resposta do crente perante este drama, os comentários de Picander, sempre na primeira pessoa (culpa “Buβ und Reu”, revolta “Sind Blitze”, compaixão por Jesus “Können Tränen”, o desejo de o salvar “Komm, süβes Kreuz”). Verdadeiro ato de contrição, “Erbarme dich”, com o seu pungente solo de violino, a inquietante “Aus Libe will” ou a esperançosa “Mache dich” são um convite direto a cada um dos ouvintes para se envolverem no drama, para lidarem, a um nível introspetivo, com as palavras cantadas.

A terceira dimensão é a comunitária. Os corais surgem ao longo da Paixão como resposta da assembleia aos eventos narrados e, musicalmente, como pontos unificadores de toda a obra. Os corais “Herzliebster Jesu” e “O Haupt voll Blut” desempenham um papel fundamental neste contexto. O primeiro é ouvido três vezes e está associado à inocência de Jesus e à sua morte como condição essencial para a salvação das almas. O segundo é ouvido cinco vezes, numa gradação harmónica dramática que termina com a invocação de Cristo na hora da morte de cada um de nós.

Ainda neste contexto, os coros “Kommt, ihr Töchter” e “O Mensch, bewein”, na abertura e conclusão da Parte I, e o derradeiro “Wir setzen uns”, no final da Parte II, assumem-se como três lamentos universais que englobam as três dimensões desta Paixão, a bíblica, a pessoal e a comunitária.

O discurso musical do Evangelista é declamado, salvo momentos de maior tensão dramática, como o arrependimento de Pedro, “Und ging heraus”, em que ganha uma dimensão rítmica e harmónica de grande expressividade emocional. O mesmo se aplica aos soliloquentes, os apóstolos Judas e Pedro, o Sumo-Sacerdote Caifás, as duas testemunhas chamadas ao Sinédrio para prestar falsas declarações, os Sumo-Sacerdotes do Templo, duas criadas de Caifás que acusam Pedro, o governador Pilatos e sua mulher.

O extremo cuidado de Bach com as palavras de Cristo é apenas percetível numa leitura atenta da partitura. Ainda que musicalmente próximas das do Evangelista, são acompanhadas pela secção de cordas da orquestra I, um halo musical que diferencia as intervenções de Cristo dos restantes personagens. O sentido apurado de dramaticidade de Bach revela-se no momento em que profere as suas últimas palavras “Eli, Eli”. O momento derradeiro de Jesus, abandonado por Deus, surge também abandonado pelo halo musical. É extraordinário constatar que esta passagem tem 22 notas, alusão ao salmo 22 “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste”, assim como o momento simbólico da instituição da Eucaristia na Última Ceia, os ariosos “Nehmet, esset” e “Trinket alle daraus” têm, respetivamente, 34 e 116 notas na linha do contínuo, referência direta aos salmos 34 “Provai e vede” e 116 “Receberei o Cálice”.

O coro assume diversas formas e papéis. Na narrativa de São Mateus, incorpora os discípulos, no inquisitivo “Herr, bin ichs”, da multidão irada “Laß ihn kreuzigen”, repetido um tom acima para ilustrar as palavras do Evangelista “Mas eles gritaram mais”, ou os presentes no Calvário reconhecendo a verdadeira dimensão de Cristo, no indiscritível “Wahrlich”.

A orquestra desempenha um papel pictórico notável, muito para além do enquadramento harmónico do que é cantado. Seguindo a tradição barroca das metáforas musicais, Bach recorre à orquestra para ilustrar a dor de um coração angustiado “O Schmerz!”, o fogo do Inferno “Eröffne den feurigen”, a flagelação de Cristo “Erbarm es Gott”, ou o tremor de terra que se seguiu à morte de Cristo “Und siehe da”.

Despida da sua função litúrgica, é hoje difícil compreender a real dimensão desta Paixão. Já não surge inserida num longuíssimo serviço religioso, dividida em duas partes, de entremeio com o Sermão, antecedida e precedida por prelúdios de órgão e corais, entoados pelos fiéis presentes, até ao facto de os músicos envolvidos não estarem no campo visual da comunidade em oração, separados em duas galerias opostas, acentuando, ainda mais, a textura antifonal. Contudo, a Paixão segundo São Mateus mantém o seu incomparável alcance poético-musical intacto, e a sua estranha habilidade para, ainda no presente, agitar a alma.

Texto de José Bruto da Costa





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